quarta-feira, 5 de março de 2008

O INÍCIO DA SAGA


Era uma tarde de agosto. Quente pra diabo, como quase todos os dias do ano nesta região do Brasil. Eu havia sido aprovado no processo seletivo para “complementação de estudos” (nome pomposo não?) na universidade federal de meu estado. Isso significava que eu iria começar a minha segunda graduação. Ou terceira, sei lá. O que geralmente seria motivo de alegria e expectativa, algo a ser visto com uma pequena inveja contida por uma parcela considerável da sociedade, acabou se mostrando uma experiência no mínimo cômica.

A nova graduação seria em filosofia. Filosofia? Para que serve isso? Você é doido? Calma, calma, responderei a todas as perguntas antes do término desta coletiva de imprensa. Eu já possuía dois diplomas, um de bacharel e um de licenciado, ambos em uma área relacionada a meio ambiente. Interessante o nosso país, você consegue dois diplomas fazendo “uma faculdade só”, que na verdade são “duas” com grades curriculares tão embaralhadas que você não consegue distinguir direito. Na verdade, o estudante esperto distingue sim – ou pelo menos finge que distingue. Mas o importante é que você saia de lá com o(s) canudo(s). Claro, após gastar toda a grana da família pagando pelos estudos e assinar algumas promissórias referentes ao último semestre de mensalidades.

Aliás, a família se colocou contra. E com bons motivos para isso! Após ter tentado entrar para as forças armadas (que mãe não quer ver seu filho em um belo uniforme?), largar essa idéia inicial para se formar em uma área “idealista” e que “não tem empregos” foi uma pequena loucura. Trabalhar como vendedor de enciclopédias ao mesmo tempo em que lavava os tubos de ensaio do laboratório da faculdade para pagar os estudos era igualmente uma má idéia. Pegar um trabalho como atendente de telemarketing após o término da primeira graduação para ter como pagar as contas era meio louco também, mas aceitável. Mas largar um bom emprego na área em que era graduado, em que eu viajava o país inteiro às custas da companhia e ganhava um salário relativamente alto para um recém-formado era caso de hospício. Ainda mais se o objetivo fosse entrar na faculdade de novo para estudar aquela coisa pomposa que tem um nome grego. Era impossível ter uma idéia mais idiota (o tempo veio a mostrar, posteriormente, que não era!).

Na verdade a coisa aconteceu de forma bem natural. Um dia anunciaram o concurso, fiz a prova sem compromisso algum, passei e fui chamado. Se fui chamado, e era de graça, por que não fazer? De graça até injeção na testa, correto? Mas isso não era suficiente: as pessoas perguntavam o que me motivou, que planos eu tinha para o futuro, que relação eu via entre minha área e este novo projeto, qual motivo ideológico eu tinha para “abandonar tudo”, o que eu pensava sobre o atual governo, como resolveria a fome na África... Tinha de ter alguma “agenda oculta” por trás disso. Eu deveria ser algum espião britânico membro da maçonaria e satanista para ter uma agenda tão oculta. Era preciso ter cuidado comigo. Afinal, se eu não tinha planos para a humanidade com um projeto tão ambicioso, talvez eu apenas sentisse falta da farra diária regada a álcool, drogas, mulheres e rock & roll do meio acadêmico. Ou talvez as duas coisas. Ou talvez eu fosse um extraterrestre. De qualquer forma, era preciso ter cuidado.

A jornada

O tal curso era noturno. Em minha mente, isso significava que eu poderia trabalhar durante o dia e estudar à noite, sem prejuízo nenhum. Isso também ajudou a convencer a família de que a idéia não era tão absurda assim. Nesta tarde de agosto seria meu primeiro dia de aula. O problema é que a tal universidade era muito esquisita: não precisei ir lá anteriormente para fazer a matrícula. Bastava me apresentar em sala de aula com um documento chamado “horário individual”. Ok, e onde diabos eu pego esse documento? Com o coordenador do curso, diziam. E onde raios eu acho esse sujeito? Droga, um homem adulto preocupado com seu primeiro dia na escola. Não ligava mais para essas coisas desde a infância.

Me dirigi ao local, um pouco mais cedo para poder resolver as pendências burocráticas que porventura surgissem. As aulas começariam às 18:00, saí de casa com mais de uma hora de antecedência. Brasileiro e sem carro, peguei um ônibus. E consegui ficar exatamente uma hora preso em um engarrafamento.

A maioria já deve ter passado pela experiência, mas para os que não passaram: jamais entre em um ônibus lotado em uma tarde quente em um horário em que você provavelmente ficará preso em um engarrafamento. Os odores no veículo já foram classificados como armas químicas pela ONU.

Desci do ônibus atrasado, suado, fedendo e cansado. Cansado pelo exercício de ficar o tempo todo tentando manter minha coluna no lugar, ao mesmo tempo em que tentava não cair com as freadas do ônibus e não encostar determinadas partes do meu corpo em determinadas partes do corpo de estranhos. Nada muito atípico. Estava na porta da universidade, e sem a menor noção de para onde me dirigir. Fui perguntando pelo caminho, tentando encontrar o tal coordenador do curso de filosofia. Achei oceanografia, história, física, biblioteconomia, serviço social, ciências biológicas, matemática, ciências sociais e economia. Achei administração, direito, arquivologia, artes visuais, música, artes plásticas, engenharia, enfermagem e nutrição. Mas não achei filosofia. Quando finalmente achei o prédio onde ficavam as salas de aula de filosofia, não achei a coordenação, ou o coordenador. Achei departamento, secretaria, sala de reuniões, diversos prédios e salas cujos nomes eram siglas complexas, papelaria, gráfica, restaurante universitário e até um boteco. Mas não achei o tal sujeito.

Comecei a aplicar o método de tentativa-e-erro. Voltei a um ponto “neutro” e comecei a testar a maçaneta de todas as portas que encontrava, às vezes batendo e às vezes sem bater, até que alguém me desse alguma informação consistente sobre o paradeiro do tal sujeito. A maioria das portas estavam fechadas ou, quando abertas, me levavam a salas desabitadas. Já eram 18:15.

Finalmente, no meio de um corredor minúsculo, bato em uma porta e ouço uma voz vinda de dentro. Abro-a, e vejo dois sujeitos lá dentro. Um deles próximo à porta, branco, alto, entre vinte e trinta anos, com cabelo desgrenhado e olhar perdido em direção ao outro sujeito. O outro atrás de uma mesa, na casa dos quarenta, queimado de sol, com óculos redondos que lembravam um certo músico inglês, cabelos desgrenhados até o ombro, cavanhaque e olhar perdido no vazio.

E a busca continua...

Pedi desculpas pela interrupção e perguntei educadamente onde poderia encontrar a coordenação do curso de filosofia. O sujeito que estava atrás da mesa, o cabeludo, fez uma longa pausa, me olhou, fez outra longa pausa (e eu esperando a resposta...), sacudiu a cabeça e começou a falar, gesticulando lentamente. Tinha cara de doido. Jeito de doido. Devia ser doido.

“Olha, para chegar à coordenação você deve sair deste corredor pela direita, entrar no outro corredor virando à direita novamente, seguir até a porta do prédio e deixá-lo”. Ele falava com uma LENTIDÃO absurda, parecia que parava para pensar em cada sílaba ou em cada gesto que fazia para tentar me indicar o caminho. O outro sujeito ficava apenas parado, parecia um poste. Eu, com a mão na maçaneta, os dois pés do lado de fora e o apenas o corpo inclinado para dentro da sala, sacudia a cabeça ansiosamente esperando que ele terminasse logo de me dar a informação para que eu pudesse sair dali. Olhei no relógio, já estava quase 40 minutos atrasado.

“Depois que você sair do prédio, vai passar por um sebo, com vários livreiros, segue, tem outro pequeno prédio...”. ACABA LOGO, INFELIZ! Anda! Eu quero sair daqui, não sei o que acontece se eu não conseguir o tal documento de que preciso hoje. Não tenho culpa se você é lerdo, tente falar um pouco mais rápido! Omita detalhes desnecessários! Anda logo!

“Passando esse pequeno prédio – não é nele – você vai seguir por uma alameda até um outro prédio, que é o da física. À sua direita estará o prédio do mestrado em letras. Lá você vai virar à esquerda, depois seguir até um outro prédio...”. Eu já estava com vontade de dar um soco no miserável. Melhor do que isso, esganá-lo. Não, talvez jogar uma cadeira nele e sair correndo. Olhei para o outro sujeito, imóvel feito uma estátua. Tinha bochechas e nariz tão vermelhos que parecia o Papai Noel. Talvez estivesse tão calado porque tivesse entornado uma garrafa inteira de vodka minutos antes. Será que deveria perguntar a ele? Não, melhor não. Já me basta um maluco. Espero que eu não fique que nem o cabeludo lerdo se começar a estudar aqui.

“... depois você vai entrar neste prédio e olhar as placas, a coordenação é lá”. FINALMENTE! Comecei a falar ao mesmo tempo em que fechava a porta e meus pés se moviam de forma a me afastar daquela cena bizarra: “Muito obrigado, o senhor foi muito útil, preciso ir, estou atrasado...”.

Foi então que o cabeludo lento e com cara de retardado mental me interrompeu. “Mas, se você tiver algum problema para resolver lá, a essa hora já está fechado”.

Droga, fechado? E agora? Enquanto eu ainda considerava se deveria explicar a informação pro sujeito a fim de obter novas informações ou sair correndo de lá o mais rapidamente possível, ele completou: “Mas se você tiver algum problema para resolver com o coordenador do curso, pode falar comigo... Sou eu”.

FILHODUMAÉGUA! Me fez gastar esse tempo todo ouvindo sua tese de doutorado sobre onde diabos eu estou e como eu chego a algum lugar para SÓ ENTÃO me dizer que o lugar que procuro está fechado e, pior ainda, que poderia resolver o problema ali mesmo, sem essa enrolação toda? Deveria tê-lo esganado quando tive a chance! Maldito! Desgraçado! #&*@$*&*%#$&%$*@$%!

Respirei fundo, me acalmei, e procurei conter o espírito de agressão que se avolumava dentro de mim. Depois de contar mentalmente até dez, expliquei a ele minha situação. Descobri que o outro sujeito, o que estava brincando de estátua, se encontrava na mesma situação que eu, e estávamos lá pelo mesmo motivo. Nosso ilustre professor – que de agora em diante seria uma das pessoas mais importantes com quem iríamos conviver, já que boa parte de nossos problemas acadêmicos passariam por ele – nos explicou então que ele SEQUER SABIA da existência do processo seletivo para novo curso superior, e que no curso de filosofia (que era o nosso, meu e do “estátua”) não existiam turmas de calouros no meio do ano, segundo semestre. Logo, estavam entrando no curso entre 25 e 30 alunos novos, sem que um dos responsáveis por organizar o lugar sequer soubesse da existência deles. Completou e disse que só ficou sabendo disso cerca de 10 minutos antes que eu batesse à porta. Vi logo que o sujeito não devia ser muito brilhante, e que era mais distraído do que a humanidade merecia. E que eu ia pagar por isso.

Aqui é necessário um adendo técnico. Estou descrevendo uma situação que ocorreu em uma universidade pública, de administração federal. Em meu estado, essa universidade (ESSA, estou me referindo especificamente a ela) é considerada o supra-sumo da educação local, onde a nata da sociedade, a elite intelectual desta pequena unidade da federação estuda. Eu havia estudado em uma faculdade particular anteriormente – dessas em que você paga para estudar – e nunca havia visto algo sequer parecido.

O cabeludo de óculos (na época, hoje ele não é mais cabeludo – raspou a cabeça por completo e ficou bem parecido com um certo pacifista indiano) sugeriu então que eu e o outro estudante assistíssemos às aulas normalmente e cursássemos as disciplinas do segundo período de curso, para que depois (no próximo semestre), “voltássemos” e fizéssemos as disciplinas do primeiro período. Disse também que pelo menos por dois anos não teríamos problemas com os pré-requisitos das disciplinas. Eu decidi arriscar, apesar de saber que teria problemas de qualquer forma.

Então, mãos à obra! Vamos nos ambientar nesse local...

Perguntei sobre o atraso, o cabeludo me disse que não era problema. “Oficialmente” as aulas começavam às 18:00, mas os alunos e professores costumavam chegar sempre depois das 18:30. Por causa do trânsito, dizia ele. Não estávamos tão atrasados assim. Mas não sabia se essa notícia deveria ser comemorada ou lamentada.

O “estátua” já havia começado a falar um pouco e agora quase parecia uma pessoa normal (estudei com ele por cerca de três meses, depois disso o rapaz abandonou o curso). O cabeludo (ou melhor, nosso coordenador) nos disse então para nos dirigirmos à nossa primeira aula, “História da Filosofia Medieval”. Nos entregou também um papel com o nome de todas as disciplinas que iríamos cursar.

“História da Filosofia Medieval”. Nome interessante. Haviam outros nomes interessantes também, como “Teoria do Conhecimento I” e “História da Filosofia Na América Latina”. Droga, isso é um curso de filosofia ou de história? Na minha inocência de recém-formado em outra área, eu imaginava que as disciplinas teriam nomes como “Aristóteles I”, “Platão III” ou “Hegel”. “Platão I” seria pré-requisito para “Platão II” e para “Aristóteles I”, e por sua vez teria como pré-requisitos “Sócrates II” e “Heráclito V”.

Achei a sala, me acomodei em uma das cadeiras. Estava bem vazia ainda, apenas uma meia dúzia de alunos. O professor ainda não havia chegado. Subitamente entra um rosto conhecido, um sujeito que eu havia visto uma única vez em uma academia de artes marciais que eu freqüentava. Puxei assunto, afinal, ainda não tinha nenhum amigo ali. Descobri que se chamava Manoel Pirro Gecconhoto De Minas Gerais. Nome comprido e esquisito. Tudo bem, não é como se o meu fosse alguma maravilha. Meus pais incluíram um “v” mudo em “Denivval” porque acharam que ficaria “sofisticado”, o que já me trouxe inúmeros problemas com entregadores de pizza e atendentes de telemarketing. Isso sem falar na tradição do lado paterno da família de colocar o nome de todos iniciado com a letra “d”. Meu pai não havia feito isso com nenhum filho ainda, mas infelizmente minha mãe não conseguiu me safar dessa.

Manoel não era mineiro só no nome, ironicamente havia nascido em Belo Horizonte. Posteriormente viria a se tornar um de meus melhores amigos, me acompanhando em várias desventuras. Mas era um cara bem esquisito. Neste dia em que o conheci, os únicos materiais que levou para a aula eram um violão, um caderninho, uma caneta e sua inseparável boina. Sim, eu disse boina. Parecia um agricultor francês. Havia sido presente de seu avô, então o acessório tinha um certo valor sentimental.

Como a sala começava a se encher, decidi dar uma boa olhada à minha volta a fim de “estudar o ambiente”. Pessoas novas, melhor ser observador. Alguns alunos já eram senhores e senhoras de idade. Costumavam fazer cara de quem estava pensando muito. “Velhos em crise existencial”, pensei. Outros iam muito arrumados, vestidos com roupas “sociais” (Nunca entendi esse termo... Existe alguma roupa que não seja “social”? Afinal, você só usa roupas por causa dos outros, todo mundo sabe que é bem melhor ficar pelado). Deviam ser os crentes. Inúmeros usavam barba e camisetas de partidos de esquerda e/ou com palavras de ordem. Eram os “engajados políticos”. Alguns pareciam ter saído de algum filme B sobre vampiros. Outros saíram diretamente da década de 70, com cabelos compridos, atitude “paz e amor” e todo o resto. Em resumo, era um lugar bem “eclético”.

O que me chamou a atenção foi a falta de garotas. Minha rápida olhadela em procura por pessoas do sexo oposto foi desanimadora. Feia, velha, feia, ruiva, gorda, feia, gordinha sexy, morena, feia, velha, feia. Acabou. Entendi porque o pessoal de lá era tão esquisito, eram quarenta homens para cada dez mulheres. Isso acaba com o humor e a sanidade de qualquer um. E dessas dez umas sete só serviriam para alguma coisa se o “pretendente” fosse vesgo, masoquista, tivesse taras estranhas ou estivesse bêbado. Ou tudo isso junto.

O professor era um ex-padre hilário. Na verdade, ex-monge. Beneditino. Neste primeiro dia a aula foi bem maçante, mas durante o restante do semestre ele nos divertiu bastante com histórias engraçadas de gente supersticiosa, padres que se envolviam com mulheres casadas, e os cavalos de Platão.

Durante o intervalo Manoel Mineiro me levou para conhecer o centro acadêmico de filosofia. “Centro acadêmico”... Nome interessante. Na minha outra faculdade não tinha isso. Deve ser onde ficam as pessoas mais normais do local, pensei.

Quando entrei, o choque foi total. Um cubículo com as paredes completamente rabiscadas, coberta de frases e desenhos sem sentido cujos autores consideraram “filosóficas”. Havia uma televisão preto-e-branco quebrada em cima de um armário. Um rolo vazio de cabos de navio (parecendo um carretel gigante) servia de mesa, e à sua volta haviam algumas cadeiras e um sofá rasgado. Uma vitrola velha tocava Chico Buarque, e as pessoas lá dentro fumavam, jogavam baralho e discutiam sobre algum tipo indefinido de “revolução”. Eu estava de volta a 1964.

Minha jornada estava apenas começando...