sábado, 8 de março de 2008

COMO ESSE LUGAR FUNCIONA?


Após minha chegada ao centro acadêmico do curso de filosofia, em meu primeiro dia de aula naquela universidade, algumas questões começaram a surgir. De ambos os lados. O pessoal do lugar queria saber quem era aquele sujeito que havia caído de pára-quedas ali, e eu queria saber quem eram eles e como aquilo lá funcionava.

Expliquei minha história: como fiz a prova para novo curso superior, como fui aprovado, como exigiram que eu me apresentasse para o início das aulas e como a universidade nem sabia que eu existia. Expliquei como fiquei perdido e tive de encontrar o lugar na base da tentativa-e-erro, como o coordenador do curso me irritou com a explicação imensa que não me levava a lugar algum e como ele não fazia idéia de que eu e mais trinta alunos na mesma situação estaríamos entrando no curso, em um semestre em que não deveriam haver turmas novas. Tive também de explicar minha história pregressa, em quê eu havia me formado anteriormente e onde. Depois disso recomeçaram as mesmas questões que eu já havia ouvido dos amigos e em casa: perguntavam que bicho me mordeu para querer cursar filosofia, que relação eu via entre minha área anterior e o novo curso, o que me levou a “abandonar tudo”, o que eu pensava sobre o atual governo, qual minha cor preferida, o que eu comia no café da manhã... Já não agüentava mais, cada pessoa nova que eu encontrava repetia a mesma bateria de perguntas – talvez filosofia seja REALMENTE uma escolha estranha de curso a se fazer. Eu só não esperava essas mesmas perguntas sendo feitas pelos próprios alunos de filosofia.

Foi lá, dentro do centro acadêmico, que eu fiz meus primeiros amigos no local. O já citado Manoel Mineiro me apresentou a todos, e algo me chamou a atenção. Poucos freqüentadores do centro acadêmico eram de fato alunos do curso de filosofia. Haviam alunos de letras, pedagogia, física, direito, história, artes, educação física e uma série de outros cursos. Mas da filosofia mesmo eram apenas uma meia dúzia. E o mais interessante: cabia esse pessoal todo em um cubículo pouco maior do que a despensa da minha casa. Não só cabiam, como conseguiam se locomover, trocar os vinis do aparelho de som, jogar truco e bisca da forma mais barulhenta possível, beber e fumar – sem que ninguém saísse ferido. E às vezes eles estudavam também.

(Isso significava também que o centro acadêmico era o único lugar na filosofia em que você conseguia encontrar um número considerável de pessoas do sexo feminino – embora em geral elas não fossem da filosofia)

Naturalmente eu tinha muitas perguntas sobre tudo aquilo, e a principal delas era: o que raios é esse lugar e como funciona? A maioria dos meus novos amigos me respondia com frases incompletas, enigmáticas ou com “relaxe, jogue este ás que você tem na mão”. Até que eu comecei a insistir demais e começaram a me dizer que tudo o que eu queria saber deveria perguntar ao “Vico”, que era a pessoa mais bem informada do local.

E cadê esse tal de Vico?

Vico era um dos alunos da filosofia. Era da minha idade, mas parecia mais novo – tinha o rosto de um menino de quinze anos. Era de uma família de advogados; estudava direito pela manhã e filosofia à noite. E era o “manda-chuva” do centro acadêmico. Não posso usar os termos “presidente”, “coordenador” ou nenhum correlato porque na época eu simplesmente não entendia direito como o lugar funcionava. E hoje mesmo não entendo muita coisa.

Na verdade, ele cuidava daquilo ali sozinho. Os demais companheiros dele na administração do lugar haviam fugido – foram cuidar de outros assuntos e foram abandonando suas funções paulatinamente. Alguns trocaram de curso, outros haviam abandonado a faculdade, a maioria simplesmente parou de se importar mesmo. Sobrou ele, que cuidava de toda a burocracia do local, bem como de vários problemas mais urgentes de ordem prática. Vico me explicou praticamente tudo o que eu precisava saber para sobreviver por ali nos primeiros meses, até que começasse a aprender algumas coisas sozinho.

Uma das coisas interessantes sobre as universidades é que se você já viu uma, já viu todas. Claro, a localização muda, o nome muda, a infra-estrutura muda... mas as pessoas não. Se na sua primeira graduação você tinha um colega que ia às aulas com uma camiseta condenando o imperialismo da coca-cola, na sua segunda graduação haverá alguém exatamente igual. Não apenas em relação à camisa ou a esse pequeno ponto de pauta ideológico. EM TUDO. Os dois irão falar da mesma forma, gesticular da mesma forma, andar da mesma forma, ouvir as mesmas músicas, ter os mesmos hobbies e ler os mesmos livros. Irão argumentar sobre qualquer assunto seguindo a mesma linha de raciocínio. E ambos irão se considerar pessoas extremamente originais. E se sentirão profundamente ofendidos se você falar que conheceu alguém exatamente igual.

Por isso, consegui distinguir uma série de “tipos” de pessoas por lá com bastante facilidade, o que me ajudou muito durante meu período de adaptação. Claro, se eu disser isso em voz alta pelos corredores irei ser execrado publicamente, taxado de mentiroso, preconceituoso e acusado de julgar apressadamente as pessoas. Mas é a mais pura verdade. Mudam apenas os rostos. Nem o estilo da armação dos óculos (de quem usa, claro) muda.

As pessoas da filosofia.

Na filosofia um tipo bastante comum são os engajados políticos. Os homens usam barba, vestem camisas vermelhas com a foto de Che Guevara ou com o símbolo de algum partido de esquerda, e transformam qualquer menção a assuntos políticos e econômicos em um longo discurso sobre os males do capitalismo. As mulheres obviamente não usam barba, mas costumam usar bottons de partidos em suas bolsas e roupas, e falam muito, MUITO alto. O tempo todo. Até para lhe pedir alguma coisa elas tentam estourar os seus tímpanos. Discutindo os rumos da política brasileira então, nem se fala. Todos eles adoram MPB, e quando perguntados sobre seus artistas preferidos mencionam Chico Buarque, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Maria Bethânia e Elis Regina. Só. Nunca encontrei um engajado que fosse capaz de mencionar um compositor ou intérprete diferente desses cinco.

Existem também os neo-hippies e simpatizantes. Ao contrário dos hippies históricos, tomam banho e aceitam uma carona para chegar na universidade de vez em quando. Até usam computadores para escrever seus trabalhos acadêmicos. Geralmente não comem carne, mas há exceções. Lêem Sartre e são anarquistas – a erudição deles sobre anarquismo é tão grande que acham Bakunin um autor “ultrapassado”. Praticam malabares. Tanto homens quanto mulheres usam bolsinhas coloridas onde transportam seus pertences. Geralmente andam com roupas bem confortáveis, feitas de fibras naturais como algodão ou linho. E sandálias, claro.

Há os artistas intelectuais. Nem todos são intelectuais de fato (na verdade, praticamente nenhum é!), mas todos fazem um esforço hercúleo para parecer assim. Eles podem ser facilmente distinguidos dos engajados políticos por conseguirem lembrar de grandes nomes da MPB que não são os cinco supra-citados. Alguns pintam, outros esculpem, outros escrevem, outros compõem, outros fazem tanto esforço para parecerem originais que possuem alguma forma bizarra de arte, batizada com um nome que eles inventaram. Muitos tentam fazer tudo isso ao mesmo tempo, sem sucesso. Geralmente gostam de filmes que ninguém vê, peças de teatro que ninguém assiste e coisas que ninguém conhece – a não ser eles mesmos. Cinema francês ou filmes brasileiros dos quais ninguém nunca ouviu falar encabeçam o topo da lista. E em matéria de arte, só serve aquilo que pode ser classificado como “contemporâneo” – se você disser que gosta das pinturas renascentistas, das esculturas da Grécia antiga ou de música clássica, eles irão te olhar com um certo desprezo mas tolerarão sua presença no local. Você ainda não possui o mesmo refinamento deles, mas pelo menos não é um completo abrutalhado. Manoel Mineiro se encaixava nesse grupo.

Existem os góticos. Sempre de preto, na maioria das vezes usando coturnos, às vezes sobretudos. É difícil entender como alguém pode se vestir assim no Brasil, em pleno verão, e não derreter de suor. Lêem quadrinhos, mas apenas quadrinhos rebuscados dos quais ninguém nunca ouviu falar. Ouvem bandas de rock, mas as chamam de alguma outra coisa – gothic metal, grind core, death metal, doom-alguma-coisa ou qualquer outro nome em inglês que queira dizer exatamente o mesmo. Ironicamente costumam gostar de música clássica e geralmente conhecem bem o assunto. Costumam ter muitas tatuagens. Se dão muito bem com os “intelectuais”, chegando por vezes a se encaixar em ambos os perfis ao mesmo tempo. Passam boa parte do tempo tentando se comportar como os coadjuvantes de seriados de vampiros que passam na TV a cabo.

Quem costuma andar muito com os góticos são os metaleiros. São praticamente iguais, com a diferença que eles não dão tanta importância ao rótulo da música que estão ouvindo, desde que existam guitarras no meio. Eles também não tentam parecer vampiros, nem sempre se vestem de preto (embora ainda o façam com freqüência) e SEMPRE usam cabelos compridos.

Obviamente não podem faltar os “ungidos de deus”. Independente da religião que seguem, são pessoas que geralmente falam baixo (MUITO baixo, do tipo que você precisa chegar bem perto para entender o que estão dizendo), se vestem impecavelmente – como se fossem a alguma reunião social importante – e aproveitam qualquer oportunidade para pregar no seu ouvido. Estão sempre com algum livro de cunho religioso debaixo do braço, e passam o tempo todo dizendo como são felizes e satisfeitos com a vida. Mas viram verdadeiras feras selvagens quando encontram alguém que não acredita no deus deles – seja um adepto de outra religião ou um ateu assumido. E não adianta tentar ser respeitoso, se você falar de forma educada e em tom de voz baixo que não acredita, eles ficarão escandalizados e começarão a pregar para você. Toda e qualquer discussão com eles, sobre qualquer assunto – política, economia, futebol, comportamento, cinema, música ou o tempo chuvoso – é sempre levada para o lado religioso. Toda a realidade é interpretada com base nisso. Poucas coisas são mais divertidas (e perigosas) do que ver um ungido de deus brigando com outro.

Quem geralmente se mete em problemas com os “ungidos” são os crédulos doentios. Um crédulo doentio é aquele que acredita em TUDO, sem ressalvas. Alguém colou um cartaz na universidade falando sobre como as energias de cristais coloridos e perfumados podem melhorar sua vida? Ele vai atrás de informações sobre o negócio e passará meses estudando sobre o assunto, enchendo a paciência de todos à sua volta com suas novas e “fantásticas” descobertas. Costumam gostar de astrologia, cristais, parapsicologia, florais de Bach (eu pensava que Bach era músico!), runas, cromoterapia, discos voadores e toda sorte de coisas afins. Muitos são de famílias cristãs e por isso são espíritas. Outros tentam ser góticos ao mesmo tempo em que são crédulos doentios e por isso dizem que seguem Wicca (seja lá o que diabos isso for). Os demais geralmente adotam religiões orientais ou, mais comum ainda, misturam todas essas coisas em uma pajelança só.

Por último, mas não menos importante, estão os que não dão a mínima. É realmente difícil descrever esse grupo, mas em geral são pessoas que não se encaixam em nenhuma das anteriores. Os engajados políticos os acusam de serem porcos capitalistas que entram na universidade com o único intuito de pegarem o diploma (e não é para isso que serve?), os neo-hippies os acham seres cruéis que comem carne às custas do sofrimento de milhões de vaquinhas, os pretensos intelectuais os acham abrutalhados que não entendem nada sobre nada, os góticos e os metaleiros acham que eles não possuem estilo, os “ungidos de deus” os consideram pessoas sem fé que ainda não estão preparadas para a “verdade” (mas tentam lhes explicar sobre essa “verdade” o tempo todo!) e os crédulos doentios também os consideram pessoas sem fé que ainda não estão preparadas para a “verdade”. Em resumo, era o grupo em que Vico e eu nos encaixávamos. E foi por isso que ele teve tanta facilidade em me explicar como as coisas funcionavam por ali...

(Continua no próximo “capítulo”!)