sexta-feira, 14 de março de 2008

ISSO AQUI É UMA ZONA!

As primeiras palavras de Vico ao tentar me explicar como aquela universidade funcionava foram: “Ih rapaz, isso aqui é uma zona!”. Isso dito em voz alta, ao meio de uma gargalhada, enquanto meu novo amigo dava uma tragada em seu cigarro, não parecia importante. Mas eu viria a descobrir depois, por conta própria, que aquilo era muito sério, e minha “sobrevivência” na universidade dependia do entendimento das relações de poder que se estabeleciam lá dentro.


Como funciona no papel...

A universidade possuía dois campus, um termo pomposo em latim para dizer que eles não conseguiram construir tudo em um lugar só e então precisaram construir metade da instituição em um outro bairro. A administração cabia (pelo menos em tese) ao reitor, e abaixo dele ficavam as pró-reitorias com seus respectivos pró-reitores (Administração, Extensão, Pesquisa, etc.). A universidade era dividida em centros (Centro de Ciências Jurídicas, Centro de Ciências Naturais, etc.) e estes centros em departamentos. Os departamentos organizavam os cursos e ofertavam disciplinas para eles. E o aluno só deveria ir lá e estudar, fazer pesquisas para que seu estudo gerasse alguma forma de “retorno” à sociedade, e pronto. Depois de alguns anos sairia com o diploma e todo mundo ficaria feliz.

Na prática, não era bem assim que a coisa funcionava.

O reitor é uma figura quase mítica. Poucos são os que já o viram pessoalmente. É ele quem determina coisas como construção de novos prédios dentro da universidade, verba destinada a cada centro, e similares. Mas ninguém nunca o vê. Em todas as solenidades para as quais é convidado (incluindo formaturas), ele manda o vice-reitor no lugar dele. Se aparece algum problema mais grave, como alunos revoltados invadindo a reitoria, ele calmamente tranca seu armário de biscoitos dentro do gabinete, sai entregando a chave com algum segurança, e depois manda o testa-de-ferro vice-reitor para agüentar o rojão. Obviamente, por ocupar o cargo máximo da universidade, ele é o culpado por tudo o que pode dar errado dentro dela (e às vezes até fora). Aqui, o reitor funciona como um abajur – está lá, ninguém sabe ao certo para que serve, às vezes você usa para alguma coisa, mas é a primeira coisa que você pensa em atirar na parede quando os ânimos esquentam.

As pró-reitorias eram um amontoado de gente, siglas e funções que ninguém entendia direito como funcionavam. Siglas pomposas como PRPPG, PROGRAD e PROEX confundem não só alunos, mas professores. Sempre que um professor se sentia inspirado perto de algum de seus pupilos, fazia um discurso sobre como a universidade deveria se apoiar em três “pilares”: ensino, pesquisa e extensão. Na teoria, o pessoal que trabalhava nessas coisas de nomes complicados é que deveria cuidar disso. Na prática, a maioria dos alunos nem sabe para que servem as pró-reitorias, e acham que é só um lugar legal que serve de “cabide de emprego” para um monte de gente incompetente que faz um cafezinho horrível e atrapalha a nossa vida com papelada. Existe um fundo de verdade nessa acusação, mas deixemos isso para outro dia.

Os centros funcionam basicamente como um conglomerado de departamentos. É com os centros que os departamentos brigam quando querem algum equipamento novo, verba, ou espaço para fazer alguma coisa. Também é com eles que os alunos brigam quando querem montar um palco no estacionamento de algum prédio e fazer festa até o dia seguinte – eles eram responsáveis pelo espaço físico também. Isso complicava as coisas: se você fosse fazer a festa no estacionamento do prédio de direito, deveria procurar a direção de um centro; se fosse no prédio de oceanografia, outro. Claro, isso era facilmente contornado fazendo as festas sem pedir permissão para ninguém, apenas “molhando a mão” do vigia noturno.

Os departamentos eram de longe os alvos mais visados, não só pelos alunos, mas pela própria estrutura administrativa da universidade. Algo deu errado? Coloque a culpa no departamento. Algo deu errado e a culpa foi sua? Tente colocar a culpa no departamento vizinho. De forma simplificada, um departamento é um grupo de professores que passa boa parte do tempo discutindo o que vão fazer com sua função de professores. O departamento de filosofia, por exemplo, “administra” o curso de filosofia – determina como é a grade, quais disciplinas os alunos vão poder cursar no semestre, essas coisas. Quando um outro departamento (digamos, psicologia) precisa de um professor da filosofia para lecionar alguma disciplina (“introdução à filosofia”, por exemplo), cabe ao departamento escolher quem é o pobre coitado professor que será mandado para lá. Existem departamentos-fantasma na universidade também – por exemplo, há um departamento de ecologia que não “administra” coisa alguma, pois não existe curso de ecologia na instituição. Ele só serve para “emprestar professores” pro curso de ciências biológicas, que necessariamente precisa de professores de ecologia. Por que não jogam os professores do departamento de ecologia para o de biologia e depois extinguem o primeiro? Não me pergunte... Alguns dizem que tem algo a ver com os biscoitos do reitor, mas eu, particularmente, não acredito nisso.

Parece simples e funcional, não? Nem tanto. Se a universidade se limitasse a um grande número de senhores e senhoras de meia-idade divididos em gangues grupos que ficam brigando entre si, com alguma organização vertical entre eles, estaria tudo ótimo. O problema é que o lugar tem alunos também... Seres recém-saídos da adolescência, entupidos de hormônios e loucos para marcar o território como sendo deles. E é aí que surgem os problemas – os grupos de senhores e senhoras de meia idade não podem mais se concentrar em brigarem mutuamente – precisam pensar no que fazer com aqueles jovens pentelhos audaciosos, divididos em grupos tão diversos quanto eles próprios.

Os alunos.

Claro, entender a motivação dos alunos ajudaria. Os professores e funcionários da universidade presumem erroneamente que os alunos estão lá para aprender algo, ou, na pior das hipóteses, sair de lá com o diploma. Os próprios alunos alimentam essa ilusão. Mas não é bem assim: a universidade é encarada pela esmagadora maioria como uma espécie de “colônia de férias” onde você se hospeda para circular com seus amigos, encher a cara e arrumar uma companhia legal para mais tarde. Nada de errado nisso, ninguém agüenta ficar 4 horas por dia ouvindo sobre como Guimarães Rosa fazia uma referência à filosofia Heideggeriana cada vez em que seu personagem Migüilim abria a boca. Mas o problema surge quando você só faz isso. Ou pior, quando só faz isso e ainda acha que está contribuindo com a sociedade.

O melhor exemplo para ilustrar a questão é o Diretório Central dos Estudantes, ou DCE. Em tese, são um grupo de alunos que se junta para discutir os importantes rumos da universidade, da sociedade brasileira e as mudanças que precisam ser feitas para melhorar cada vez mais o nosso ensino. Na prática, são um pessoal que se veste com camisetas do Che Guevara que custam 150 reais, gostam de bancar os pseudo-intelectuais citando frases feitas ao melhor do estilo “propaganda política para o povão” e são filiados a algum partido de esquerda, como o PT ou o PSOL. Aliás, poucas coisas são tão cômicas quanto ver um membro do DCE falando. “Os membros da chapa 1, que é do PT, brigaram com os membros da chapa 2, que é do PSOL, o que proporcionou votos à chapa 3, que é do PMDB...”. Sim amigos, as chapas possuem DONOS. Estes importantes jovens intelectuais que alegam defender os interesses dos alunos são todos filiados a algum partido, e são OS PARTIDOS que dizem a eles como devem se organizar e agir em relação aos assuntos da faculdade. Felizmente, a maioria deles não possui muita competência – se algum deles tivesse, já estaria mandando até no reitor.

E já que mencionei o reitor de novo, é importante lembrar que ele é o principal alvo do DCE. Cada vez que ele dá um espirro, alguém pega um megafone e vai para a frente da reitoria gritar palavras de ordem sobre como a classe trabalhadora é oprimida e necessitada, e a universidade está se tornando um feudo de pequenos-burgueses. Se o reitor fizer algo muito grave – como passar mais de dois meses sem dar notícias – os alunos do DCE organizam uma ocupação da reitoria para reclamar melhores condições de estudo, com uma pauta de reivindicações que já estava pronta há meses e serve só para isso – já que eles poderiam ter reivindicado aquelas coisas muito antes.

As ocupações da reitoria são algo divertido de se observar. Deveriam ser um movimento político-social de relevância. Na prática, servem para lançar na mídia o nome de uma meia dúzia de “líderes estudantis” (ou seja, membros da máfia do DCE) que no futuro se candidatarão ao cargo de vereadores como iniciação na carreira política. As ocupações também servem para transformar a reitoria no motel da universidade, e o gabinete do reitor em boca-de-fumo. Depois que os jornalistas vão embora, claro. Dizem as más línguas que o DCE tem até um “caixa dois” cujo único propósito é pagar os abortos das meninas que engravidam durante as ocupações da reitoria, e que esse “caixa dois” é mantido pelo salário que alguns dos estudantes recebem em cargos-fantasma na assembléia legislativa. No entanto, nunca conseguiram provar estes boatos.

O mais interessante é que quando você questiona os membros do DCE ou seus simpatizantes a respeito da forma como eles agem, é IMEDIATAMENTE acusado de ser um pequeno-burguês elitista que não se importa com a miséria e o sofrimento dos milhões que passam fome para pagar o ensino público, é tido como um “ignorante em assuntos político-sociais” e uma pessoa desinteressada sobre o que ocorre na universidade. Em resumo, é taxado de “aluno que só quer entrar na universidade, pegar o diploma e sair”. Eles sempre tentam usar como argumentação que você nunca aparece nas reuniões do DCE, sendo que as tais “reuniões” raramente são divulgadas para o grande público e quando o são e você vai, parece uma tentativa de lavagem cerebral para que você se una ao “partido”.

Ou seja: o pessoal do DCE é o melhor exemplo disponível para explicar como é um aluno que age exatamente como se fosse um adolescente em uma colônia de férias, mas acha que é um importante membro da sociedade brasileira indispensável ao progresso social e político do país. Interessante que apesar de tamanha pompa e barulho, e da importância que eles atribuem a si mesmos, a esmagadora maioria dos alunos da instituição não está nem aí para o que eles fazem ou deixam de fazer. Eles encaram isso como “serviço de mártir” – estão se sacrificando para que os burgueses possam viver com tranqüilidade – os demais alunos encaram eles como garotos burros que se expõem em excesso para resolver pepinos nos quais eles não colocariam a mão. De certa forma, ambos estão corretos. Em parte.

Demais tretas!

Mas o DCE não é o único a arrumar problemas. Alunos, professores, funcionários, todo mundo arruma confusão lá dentro – de um jeito ou de outro.

Existe um professor na filosofia que tem incontáveis processos administrativos internos contra ele, que vão de venda de material didático aos alunos a tentativa de desvio de bolsa de um de seus orientandos. Sujeitos estranhos ficam nos corredores tentando te vender o “jornal da causa operária” por R$3,50 a cada vez que você passa. Um hacker invadiu o sistema da universidade e aumentou o número de vagas de uma disciplina para que amigos pudessem fazer a matrícula, obrigando o professor a contratar outro hacker para desfazer a bagunça, sem sucesso. Os seguranças são tarados que se escondem e ficam observando cada vez que encontram um casalzinho fazendo sexo em alguma parte da universidade. O pipoqueiro satisfaz os desejos sórdidos dos seguranças quando ninguém está olhando. Não se sabe se foram alunos ou professores, mas andaram cultivando certas “plantas geneticamente modificadas” em uma pequena “horta” atrás do departamento de ecologia, o que rendeu sérios problemas com a divisão de narcóticos da polícia federal. Certa vez um aluno de agronomia apareceu no centro dizendo que seu histórico acadêmico continha um erro, pois ele havia sido aprovado com nota máxima em uma disciplina na qual nunca se matriculou e sequer tinha os pré-requisitos – a disciplina era “cirurgia cardio-toráxica II”, e pertencia ao curso de medicina. Interessante saber que os alunos de lá são tão bons que conseguiriam fazer um transplante de coração em uma vaca mesmo sem nunca terem estudado isso antes.

E isso tudo é só a ponta do iceberg.